O ensino da Língua Portuguesa na escola tem sido, quase sempre, voltado para a aprendizagem da escrita correta e para o domínio dos conceitos gramaticais. É um dos objetivos mais importantes dos professores das séries iniciais o ensinar o aluno a escrever. Porém, é comum a um grande número de professores de 1º e 2º ciclos e, mesmo aos de Língua Portuguesa, saberem muito pouco sobre a natureza da escrita, como funciona, para que serve e como deve ser usada.
As formas gráficas e ortográficas da escrita não são bem compreendidas.
Nosso sistema linguístico não possui uma única forma de representação gráfica (existem vários tipos de traçados indiferentes para mesmos sons) e, além disso, não é completamente alfabético como pensamos.
Nossa gramática (normativa e, por isso, deficiente) e nossas cartilhas que ainda estão em uso, apesar dos estudos mais avançados a respeito da aprendizagem da escrita e da leitura, não explicam nem aos mestres nem aos aprendizes esta multivariedade de traçados ou de formas de representação gráfica, o porquê dessas diferenças e como ensiná-las, como aprendê-las.
O que se observa, de início, é que exigimos das crianças um trabalho dobrado: primeiro, aprender a escrever em letra de forma. É mais fácil, mais compreensível, aparece nos textos, rótulos...
Logo, de imediato, passamos a exigir que a criança passe a escrever em letra cursiva, mais complicada, de mais difícil leitura e de caráter individual e idiossincrático: cada usuário adota seu próprio traçado, coloca suas nuances, mostra sua personalidade. Mas a nossa sociedade e a nossa cultura consideram importantíssimo, fundamental mesmo, saber escrever emendado.
Os pais exigem da escola, os professores exigem dos alunos e esquecem de perguntar-lhes o que a escrita representa para eles. Ora, escreve-se para que outros leiam o que se escreve. O ler é condicionado pelo escrever e, para ler significativamente, é preciso que a escrita conduza o leitor a enquadrar todos os símbolos (letras, palavras, acentos, notações, etc...) no universo cultural, social, histórico em que o escritor se baseou para escrever, como nos ensina Cagliari.
A escrita é a tecnologia do intelecto, uma das maiores invenções manuintelectuais criadas pelo homem, como falam Teberosky e Tolchinsky. O homem escreve para registrar, para comunicar, para controlar, para influir sobre a conduta do outro, para produzir e não só reproduzir (copiar) e distanciar-se do produzido; para criar, combinar, elaborar textos, sob o ponto de vista estético (literatura).
A escrita pode ser um fator importante para que se estabeleça e se mantenha um dialeto como padrão, pois goza de prestígio. Graficamente representada, uma língua tem mais possibilidade de servir de modelo pela estabilidade que adquire, devidamente registrada.
A escrita é mais cuidadosa que a fala e, portanto, mais permanente e torna mais evidente os problemas que se constituem distúrbios de grafia: disortografia ou disgrafia, foco do nosso estudo.
Disgráficas são aquelas crianças que apresentam dificuldades no ato motor da escrita, tornando a grafia praticamente indecifrável.
Então, disgrafia é a perturbação da escrita no que diz respeito ao traçado das letras e à disposição dos conjuntos gráficos no espaço utilizado. Relaciona-se, portanto, a dificuldades motoras e espaciais.
Porém, é preciso entender que uma criança em processo de construção da escrita naturalmente apresenta dificuldades no traçado das letras, até dominá-lo corretamente. Durante esse período, o professor deverá orientar os alunos a realizarem adequadamente a escrita para evitar a permanência de traçados incorretos e, consequentemente, a disgrafia.
Podemos apontar como causas prováveis da disgrafia os distúrbios de motricidade ampla e, especialmente, fina, os distúrbios de coordenação visomotora, a deficiência da organização temporo espacial, os problemas de lateralidade e direcionalidade e o erro pedagógico.
Alguns comentários, expressos a seguir, são indispensáveis em relação a estas causas.
Distúrbios na motricidade ampla e fina
Freqüentemente, observamos que, mesmo em crianças de nível intelectual médio ou elevado, existe um determinado potencial ou um certo conjunto de habilidades não-desenvolvidas. Neste caso, é possível constatarmos uma ou outra ou várias disfunções psiconeurológicas ou anomalias na maturação do sistema nervoso central,tornando-se evidente, na maior parte das situações, a falta de coordenação entre o que a criança se propõe a fazer (intenção) e a respectiva ação. Ocorre, portanto, um verdadeiro hiato que resulta em dificuldade ou, mesmo, impedimento de expressão por meio do corpo.
Essa falta de sintonia entre o pretendido e o realizado provoca desequilíbrio, especialmente o afetivo,com repercussões de ordem social, nas áreas motora e perceptiva. Na área motora, aparecem a hiper ou a hipoatividade, as perturbações do ritmo,a incoordenação excessiva, prejudicando a postura, a locomoção, os movimentos dos braços, pernas, mãos, pés e a respiração. Na área perceptiva, evidenciam-se desordem perceptovisual, de orientação e estruturação espacial, perturbações do esquema corporal e da lateralidade.
Tais perturbações interferem, sensivelmente, em todos os campos de ação da criança. Na escola, geralmente ela estará sujeita a mau rendimento, a um desempenho medíocre, apesar da sua boa capacidade intelectual, de vez que um bom desempenho requer atenção e concentração da criança. Se não houver domínio do corpo, se faltar autonomia, automatismo e precisão no gesto, a atenção será desviada e absorvida no necessário controle do movimento.
Para que a criança adquira os mecanismos da escrita, além da necessidade de saber orientar-se no espaço (motricidade ampla), deve ter consciência de seus membros, da mobilização dos mesmos, e saber fazer agir, independentemente, o braço em relação ao ombro, a mão em relação ao braço e ter a capacidade de individualizar os dedos (motricidade fina) para pegar o lápis ou a caneta e riscar, traçar, escrever, desenhar o que quiser.
Existem inúmeros exercícios para minimizar ou sanar essas dificuldades. O professor precisa iniciar com aqueles que visam exercitar os grandes músculos e, posteriormente, trabalhar com os peque-nos músculos, seja na educação infantil, seja no ensino fundamental.
Distúrbios na coordenação visomotora
A coordenação visomotora está presente sempre que um movimento dos membros superiores ou inferiores ou de todo o corpo responde a um estímulo visual de forma adequada.
Ao traçar uma linha, por exemplo, a criança, ao mesmo tempo que segue, com os olhos, a ação de riscar, deve ter em mira o alvo a atingir. Isso implica sempre ter atenção a algo imediatamente posterior à ação que está realizando no instante presente.
A criança com problemas de coordenação visomotora não consegue, por exemplo, traçar linhas com trajetórias predeterminadas, pois, apesar de todo o esforço, a mão não obedece ao trajeto previamente estabelecido.
Esses problemas repercutem negativamente nas aprendizagens, uma vez que para aprender e fixar a grafia é indispensável que a criança tenha conveniente coordenação olho/mão, da qual depende a destreza manual.
Os esforços para focalização visual distraem a sua atenção e ela perde a continuidade do traçado das letras e suas associações.
Deficiência na organização temporo espacial
Quando falamos em organização temporo espacial nos referimos à orientação e à estrutura do espaço e do tempo: é o conhecimento e o domínio de direita/esquerda, frente/atrás/lado, alto/ baixo, antes/depois/durante, ontem/hoje/ amanhã, etc., que a criança deve ter desenvolvido para construir seu sistema de escrita.
A criança com problemas de orientação e estruturação espacial, normalmente, apresenta dificuldades ao escrever, invertendo letras, combinações silábicas, sob o ponto de vista de localização, o que denota uma insuficiência da análise perceptiva dos diferentes elementos do grafismo. Ela não consegue, também, escrever obedecendo ao sentido correto de execução das letras, nem orientar-se no plano da folha, apresentando má utilização do papel e/ou escrevendo fora da linha. É natural, ainda, que encontre dificuldade na leitura e na compreensão de sentido de um texto, como decorrência da desorganização temporo espacial.
Problemas de lateralidade e direcionalidade
Sabemos que dos distúrbios de motricidade manifestam-se, principalmente, por meio dos gestos imprecisos,dos movimentos desordenados, da postura inadequada, da lentidão excessiva, , pela má organização do espaço em relação ao próprio corpo ou, ainda, por desarranjos de ordem afetiva.
As perturbações da lateralidade podem apresentar-se de várias maneiras:
• lateralidade mal-estabelecida – caracteriza-se pela não definição da dominância, em especial, da mão direita ou esquerda. Nesse caso, a criança vive uma permanente incerteza quanto ao uso das mãos, tornando-se, por isso, confusa e pouco eficiente no desempenho das atividades motoras. Uma dominância não claramente definida pode ser, também, causa de certas dificuldades, como, por exemplo, inversão de letras na leitura e/ou na escrita, confusão de letrade grafismos (traçados) parecidos, mas com orientação espacial diferente (por exemplo, b/p - bato/pato). O que conhecemos como escrita espelhada também pode ser decorrência da lateralidade mal estabelecida v(b/d - bato/dato);
• sinistrismo ou canhotismo – é a dominância do uso da mão esquerda. A eficiência da mão esquerda, nas crianças canhotas é inferior à da mão direita nas destras, tanto pela velocidade quanto pela precisão, em geral. Podemos observar que essas crianças, bem como as destras, podem apresentar, muitas vezes, problemas de orientação e estruturação espacial que tendem a acentuar-se com a idade, durante um certo período de seu desenvolvimento. Na verdade, um canhoto pode escrever com a mesma destreza e facilidade de um destro. Porém, para chegar aos mesmos resultados, a criança canhota deve percorrer uma série diferente de movimentos e de ajustamentos motores. Sua tendência natural e espontânea, no plano horizontal, é escrever da direita para a esquerda. É, pois, tarefa do professor auxiliá-la e incentivá-la para que ela possa, com a maior brevidade, encontrar seus padrões motores;
• lateralidade cruzada – caracteriza-se pela dominância da mão direita em conexão com o olho esquerdo, por exemplo, ou da mão esquerda com o olho direito. Esse tipo de lateralidade heterogênea – olho/mão – tem sido pesquisado por muitos estudiosos do tema, que, apesar dos esforços, têm chegado a conclusões divergentes. Vários autores levantam a hipótese de que a lateralidade cruzada poderia ser, em certos casos, causa de desequilíbrios motores e outras perturbações, que dificultariam o aprendizado e o desenvolvimento da leitura e da escrita. Há diferentes pesquisas sobre o assunto e não há conclusões definitivas a respeito;
• sinistrismo ou canhotismo contrariado – a dominância da mão esquerda contraposta ao uso forçado e imposto da mão direita pode comprometer a eficiência motora da criança, na orientação em relação ao próprio corpo e na estruturação espacial. Alguns autores admitem que, em determina-dos casos, a gagueira, por exemplo, seja consequência de sinistrismo contrariado e, no caso, aconselham que a criança volte a usar a mão dominante (mão esquerda). Afirmam, também, que os canhotos tendem a apresentar o traçado gráfico que conhecemos como escrita espelhada, o que merece toda a atenção do professor.
Erro pedagógico
Geralmente, as dificuldades que os alunos apresentam na escrita se devem a falhas no processo de ensino, nas estratégias inadequadas escolhidas pelos docentes ou por desconhecimento do problema ou por despreparo.
Os cuidados que o professor das séries iniciais (1‘ ciclo) deve ter quando seus alunos começam a aprender a escrever não devem resumir-se à ortografia mas, também, à legibilidade. Esses cuidados prolongam-se por todo o período de escolarização ou pelo professor de classe ou pelos professores de Língua Portuguesa.
Preparar um aluno para escrever com correção e legibilidade é trabalhar com ele, desde o início, atentando para a grafia correta das palavras, a forma das letras, a uniformidade no traçado, o espaçamento, o ligamento e a inclinação da escrita em relação ao espaço onde se está escrevendo.
A legibilidade é uma qualidade complexa que se constitui na soma desses vários aspectos, dentre outros considerados importantes.
Forma das letras
Cada letra tem uma forma característica. A clareza de traçado então reside em escrever cada letra na sua forma exata. A letra cursiva deformada pode ser a causa mais poderosa de ilegibilidade. Por exemplo:
a) se o aluno não fecha o círculo do a, pode-se lê-lo como u ou ce.;
b) quando não fecha o círculo do d, pode-se lê-lo como cl ou el;
c) alguns alunos escrevem e por z;
d) outros escrevem n como u;
e) alguns alunos podem adquirir o hábito de escrever m como u ou como n, etc.
Estes exemplos são suficientes para demonstrar a importância do formato da letra para a legibilidade da escrita. Muitas vezes, as formas inadequadas das letras são consequência da falta de orientação docente, do mau uso ou do abuso das cópias e dos ditados ou da rapidez descabida da escrita para fazer apontamentos em aula, dentre outras.
Uniformidade
A letra cursiva, em nosso alfabeto, apresenta quatro características no traçado em relação à linha:
• só há uma letra cujo traçado sobe a desce – f;
• há seis letras com haste ascendente – b,d,h,k.,l,t;
• há seis letras com haste descendente – g j,p ,q, y, z
• há treze letras que citamos de pequenas – a, c, e.i.,m, n, o,r,s,u, v,w, x.
Aprender a manter a uniformidade no traçado significa formar hábitos de escrita que obedeçam às quatro características apontadas.
Espaçamento
O espaçamento é importante fator que concorre para a legibilidade. É preciso verificar:
- Se há espaço entre uma letra e outra, na palavra;
- Se há espaço entre uma palavra e outra;
- Se há espaço entre uma frase e outra;
- Se há espaço entre parágrafos.
Quando os espaços entre as letras não são uniformes, há prejuízo na leitura; o mesmo acontece entre as palavras. Especialmente no quadro-de-giz, o professor deve cuidar para que fique um espaço adequado entre as palavras, principalmente nas séries do 1‘ciclo. Isto evita que as crianças que estão mais afastadas do quadro vejam as palavras, uma como continuação da outra, copiando-as como se fossem uma só.
É preciso cuidar, também, o espaço entre frases, tendo em vista as letras com hastes.
Ligamentos
Na letra cursiva, os ligamentos também são fatores importantíssimos para a legibilidade: letras que formam uma palavra devem ser ligadas entre si. A omissão de ligamentos provoca no leitor uma como escrita espelhada, o que merece toda a atenção do professor.
Tendência à leitura de uma palavra por partes, simulando diferentes palavras. Em se tratando de crianças que lêem o que escrevemos no quadro-de-giz ou em folhas xerografadas, a nossa omissão de ligamentos pode concorrer para a ilegibilidade. O aluno, geralmente, escreve como o professor ensina.
Inclinação
A letra cursiva de uma pessoa destra se apresenta ligeiramente inclinada para a direita. Isto favorece a leitura.
A inclinação da letra pode depender da posição que se adota para escrever mas, essencialmente, depende da posição em que se coloca o papel onde vai se escrever. Um aluno sentado de frente para sua mesa deverá colocar a folha de papel ou a de seu caderno levemente inclinada para a esquerda. Desse modo, a letra sairá ligeiramente inclinada para a direita. Quanto maior a inclinação do papel, à esquerda, maior a inclinação de letra à direita.
Crianças que escrevem com a mão esquerda deverão inclinar o papel para a direita.
Outro aspecto a ser observado é a passagem de um sistema de escrita (letra de forma) para outro (letra cursiva), por exemplo. É preciso realizar um trabalho bem planejado, de comum acordo com os alunos, de modo sistemático e cuidadoso.
A letra cursiva exige maior esforço mental e físico da criança porque apresenta complexidade de movimentos.
De preferência, o professor deve procurar realizar um atendimento individualizado, atento às dificuldades que poderão surgir, incentivando todos os alunos, em geral, e cada um, em particular, para que se evitem sérios problemas posteriormente.
O uso da caligrafia, considerada obsoleta e antipedagógica pelos desavisados e indicada pelos mais modernos autores, ocupa papel relevante, hoje em dia. Visa atender às atuais exigências de clareza, legibilidade e rapidez, justificando-se, portanto, sua presença em sala de aula, nas atividades escolares.
Para que o professor possa identificar, com mais segurança, crianças com disgrafia, em sala de aula, apresentamos alguns indicadores:
rigidez no traçado – o aluno pressiona demasiado o lápis contra o papel;
relaxamento gráfico – o aluno pressiona debilmente o lápis contra o papel;
impulsividade e instabilidade no traçado – o aluno demonstra descontrole no gesto gráfico; o traçado é impulsivo, apressado, confuso, com a escrita irregular e instável;
lentidão no traçado – o aluno demonstra um traçado arrastado, lento, tornando evidente um grande esforço de aplicação e controle;
dificuldades relativas ao espaçamento – o aluno deixa espaço irregular (pequeno ou grande demais) entre letras, palavras; não respeita margens; amontoa letras;
dificuldades relativas à uniformidade – o aluno escreve com letras grandes demais (macrografia) ou pequenas demais (micrografia) ou mistura ambas; mostra desproporção entre maiúsculas e minúsculas e entre as hastes;
dificuldades relativas à forma das letras, aos ligamentos e à inclinação – o aluno apresenta deformação no traçado das letras; evidencia falta de ligamentos entre as letras; inclina-as demasiadamente para a esquerda, para a direita ou para ambas as direções.
Com base nestas informações, o professor poderá fazer um diagnóstico das possíveis dificuldades de seus alunos, fazendo o registro de suas observações na Ficha para Coleta de Dados que sugerimos no quadro abaixo.
As formas gráficas e ortográficas da escrita não são bem compreendidas.
Nosso sistema linguístico não possui uma única forma de representação gráfica (existem vários tipos de traçados indiferentes para mesmos sons) e, além disso, não é completamente alfabético como pensamos.
Nossa gramática (normativa e, por isso, deficiente) e nossas cartilhas que ainda estão em uso, apesar dos estudos mais avançados a respeito da aprendizagem da escrita e da leitura, não explicam nem aos mestres nem aos aprendizes esta multivariedade de traçados ou de formas de representação gráfica, o porquê dessas diferenças e como ensiná-las, como aprendê-las.
O que se observa, de início, é que exigimos das crianças um trabalho dobrado: primeiro, aprender a escrever em letra de forma. É mais fácil, mais compreensível, aparece nos textos, rótulos...
Logo, de imediato, passamos a exigir que a criança passe a escrever em letra cursiva, mais complicada, de mais difícil leitura e de caráter individual e idiossincrático: cada usuário adota seu próprio traçado, coloca suas nuances, mostra sua personalidade. Mas a nossa sociedade e a nossa cultura consideram importantíssimo, fundamental mesmo, saber escrever emendado.
Os pais exigem da escola, os professores exigem dos alunos e esquecem de perguntar-lhes o que a escrita representa para eles. Ora, escreve-se para que outros leiam o que se escreve. O ler é condicionado pelo escrever e, para ler significativamente, é preciso que a escrita conduza o leitor a enquadrar todos os símbolos (letras, palavras, acentos, notações, etc...) no universo cultural, social, histórico em que o escritor se baseou para escrever, como nos ensina Cagliari.
A escrita é a tecnologia do intelecto, uma das maiores invenções manuintelectuais criadas pelo homem, como falam Teberosky e Tolchinsky. O homem escreve para registrar, para comunicar, para controlar, para influir sobre a conduta do outro, para produzir e não só reproduzir (copiar) e distanciar-se do produzido; para criar, combinar, elaborar textos, sob o ponto de vista estético (literatura).
A escrita pode ser um fator importante para que se estabeleça e se mantenha um dialeto como padrão, pois goza de prestígio. Graficamente representada, uma língua tem mais possibilidade de servir de modelo pela estabilidade que adquire, devidamente registrada.
A escrita é mais cuidadosa que a fala e, portanto, mais permanente e torna mais evidente os problemas que se constituem distúrbios de grafia: disortografia ou disgrafia, foco do nosso estudo.
Disgráficas são aquelas crianças que apresentam dificuldades no ato motor da escrita, tornando a grafia praticamente indecifrável.
Então, disgrafia é a perturbação da escrita no que diz respeito ao traçado das letras e à disposição dos conjuntos gráficos no espaço utilizado. Relaciona-se, portanto, a dificuldades motoras e espaciais.
Porém, é preciso entender que uma criança em processo de construção da escrita naturalmente apresenta dificuldades no traçado das letras, até dominá-lo corretamente. Durante esse período, o professor deverá orientar os alunos a realizarem adequadamente a escrita para evitar a permanência de traçados incorretos e, consequentemente, a disgrafia.
Podemos apontar como causas prováveis da disgrafia os distúrbios de motricidade ampla e, especialmente, fina, os distúrbios de coordenação visomotora, a deficiência da organização temporo espacial, os problemas de lateralidade e direcionalidade e o erro pedagógico.
Alguns comentários, expressos a seguir, são indispensáveis em relação a estas causas.
Distúrbios na motricidade ampla e fina
Freqüentemente, observamos que, mesmo em crianças de nível intelectual médio ou elevado, existe um determinado potencial ou um certo conjunto de habilidades não-desenvolvidas. Neste caso, é possível constatarmos uma ou outra ou várias disfunções psiconeurológicas ou anomalias na maturação do sistema nervoso central,tornando-se evidente, na maior parte das situações, a falta de coordenação entre o que a criança se propõe a fazer (intenção) e a respectiva ação. Ocorre, portanto, um verdadeiro hiato que resulta em dificuldade ou, mesmo, impedimento de expressão por meio do corpo.
Essa falta de sintonia entre o pretendido e o realizado provoca desequilíbrio, especialmente o afetivo,com repercussões de ordem social, nas áreas motora e perceptiva. Na área motora, aparecem a hiper ou a hipoatividade, as perturbações do ritmo,a incoordenação excessiva, prejudicando a postura, a locomoção, os movimentos dos braços, pernas, mãos, pés e a respiração. Na área perceptiva, evidenciam-se desordem perceptovisual, de orientação e estruturação espacial, perturbações do esquema corporal e da lateralidade.
Tais perturbações interferem, sensivelmente, em todos os campos de ação da criança. Na escola, geralmente ela estará sujeita a mau rendimento, a um desempenho medíocre, apesar da sua boa capacidade intelectual, de vez que um bom desempenho requer atenção e concentração da criança. Se não houver domínio do corpo, se faltar autonomia, automatismo e precisão no gesto, a atenção será desviada e absorvida no necessário controle do movimento.
Para que a criança adquira os mecanismos da escrita, além da necessidade de saber orientar-se no espaço (motricidade ampla), deve ter consciência de seus membros, da mobilização dos mesmos, e saber fazer agir, independentemente, o braço em relação ao ombro, a mão em relação ao braço e ter a capacidade de individualizar os dedos (motricidade fina) para pegar o lápis ou a caneta e riscar, traçar, escrever, desenhar o que quiser.
Existem inúmeros exercícios para minimizar ou sanar essas dificuldades. O professor precisa iniciar com aqueles que visam exercitar os grandes músculos e, posteriormente, trabalhar com os peque-nos músculos, seja na educação infantil, seja no ensino fundamental.
Distúrbios na coordenação visomotora
A coordenação visomotora está presente sempre que um movimento dos membros superiores ou inferiores ou de todo o corpo responde a um estímulo visual de forma adequada.
Ao traçar uma linha, por exemplo, a criança, ao mesmo tempo que segue, com os olhos, a ação de riscar, deve ter em mira o alvo a atingir. Isso implica sempre ter atenção a algo imediatamente posterior à ação que está realizando no instante presente.
A criança com problemas de coordenação visomotora não consegue, por exemplo, traçar linhas com trajetórias predeterminadas, pois, apesar de todo o esforço, a mão não obedece ao trajeto previamente estabelecido.
Esses problemas repercutem negativamente nas aprendizagens, uma vez que para aprender e fixar a grafia é indispensável que a criança tenha conveniente coordenação olho/mão, da qual depende a destreza manual.
Os esforços para focalização visual distraem a sua atenção e ela perde a continuidade do traçado das letras e suas associações.
Deficiência na organização temporo espacial
Quando falamos em organização temporo espacial nos referimos à orientação e à estrutura do espaço e do tempo: é o conhecimento e o domínio de direita/esquerda, frente/atrás/lado, alto/ baixo, antes/depois/durante, ontem/hoje/ amanhã, etc., que a criança deve ter desenvolvido para construir seu sistema de escrita.
A criança com problemas de orientação e estruturação espacial, normalmente, apresenta dificuldades ao escrever, invertendo letras, combinações silábicas, sob o ponto de vista de localização, o que denota uma insuficiência da análise perceptiva dos diferentes elementos do grafismo. Ela não consegue, também, escrever obedecendo ao sentido correto de execução das letras, nem orientar-se no plano da folha, apresentando má utilização do papel e/ou escrevendo fora da linha. É natural, ainda, que encontre dificuldade na leitura e na compreensão de sentido de um texto, como decorrência da desorganização temporo espacial.
Problemas de lateralidade e direcionalidade
Sabemos que dos distúrbios de motricidade manifestam-se, principalmente, por meio dos gestos imprecisos,dos movimentos desordenados, da postura inadequada, da lentidão excessiva, , pela má organização do espaço em relação ao próprio corpo ou, ainda, por desarranjos de ordem afetiva.
As perturbações da lateralidade podem apresentar-se de várias maneiras:
• lateralidade mal-estabelecida – caracteriza-se pela não definição da dominância, em especial, da mão direita ou esquerda. Nesse caso, a criança vive uma permanente incerteza quanto ao uso das mãos, tornando-se, por isso, confusa e pouco eficiente no desempenho das atividades motoras. Uma dominância não claramente definida pode ser, também, causa de certas dificuldades, como, por exemplo, inversão de letras na leitura e/ou na escrita, confusão de letrade grafismos (traçados) parecidos, mas com orientação espacial diferente (por exemplo, b/p - bato/pato). O que conhecemos como escrita espelhada também pode ser decorrência da lateralidade mal estabelecida v(b/d - bato/dato);
• sinistrismo ou canhotismo – é a dominância do uso da mão esquerda. A eficiência da mão esquerda, nas crianças canhotas é inferior à da mão direita nas destras, tanto pela velocidade quanto pela precisão, em geral. Podemos observar que essas crianças, bem como as destras, podem apresentar, muitas vezes, problemas de orientação e estruturação espacial que tendem a acentuar-se com a idade, durante um certo período de seu desenvolvimento. Na verdade, um canhoto pode escrever com a mesma destreza e facilidade de um destro. Porém, para chegar aos mesmos resultados, a criança canhota deve percorrer uma série diferente de movimentos e de ajustamentos motores. Sua tendência natural e espontânea, no plano horizontal, é escrever da direita para a esquerda. É, pois, tarefa do professor auxiliá-la e incentivá-la para que ela possa, com a maior brevidade, encontrar seus padrões motores;
• lateralidade cruzada – caracteriza-se pela dominância da mão direita em conexão com o olho esquerdo, por exemplo, ou da mão esquerda com o olho direito. Esse tipo de lateralidade heterogênea – olho/mão – tem sido pesquisado por muitos estudiosos do tema, que, apesar dos esforços, têm chegado a conclusões divergentes. Vários autores levantam a hipótese de que a lateralidade cruzada poderia ser, em certos casos, causa de desequilíbrios motores e outras perturbações, que dificultariam o aprendizado e o desenvolvimento da leitura e da escrita. Há diferentes pesquisas sobre o assunto e não há conclusões definitivas a respeito;
• sinistrismo ou canhotismo contrariado – a dominância da mão esquerda contraposta ao uso forçado e imposto da mão direita pode comprometer a eficiência motora da criança, na orientação em relação ao próprio corpo e na estruturação espacial. Alguns autores admitem que, em determina-dos casos, a gagueira, por exemplo, seja consequência de sinistrismo contrariado e, no caso, aconselham que a criança volte a usar a mão dominante (mão esquerda). Afirmam, também, que os canhotos tendem a apresentar o traçado gráfico que conhecemos como escrita espelhada, o que merece toda a atenção do professor.
Erro pedagógico
Geralmente, as dificuldades que os alunos apresentam na escrita se devem a falhas no processo de ensino, nas estratégias inadequadas escolhidas pelos docentes ou por desconhecimento do problema ou por despreparo.
Os cuidados que o professor das séries iniciais (1‘ ciclo) deve ter quando seus alunos começam a aprender a escrever não devem resumir-se à ortografia mas, também, à legibilidade. Esses cuidados prolongam-se por todo o período de escolarização ou pelo professor de classe ou pelos professores de Língua Portuguesa.
Preparar um aluno para escrever com correção e legibilidade é trabalhar com ele, desde o início, atentando para a grafia correta das palavras, a forma das letras, a uniformidade no traçado, o espaçamento, o ligamento e a inclinação da escrita em relação ao espaço onde se está escrevendo.
A legibilidade é uma qualidade complexa que se constitui na soma desses vários aspectos, dentre outros considerados importantes.
Forma das letras
Cada letra tem uma forma característica. A clareza de traçado então reside em escrever cada letra na sua forma exata. A letra cursiva deformada pode ser a causa mais poderosa de ilegibilidade. Por exemplo:
a) se o aluno não fecha o círculo do a, pode-se lê-lo como u ou ce.;
b) quando não fecha o círculo do d, pode-se lê-lo como cl ou el;
c) alguns alunos escrevem e por z;
d) outros escrevem n como u;
e) alguns alunos podem adquirir o hábito de escrever m como u ou como n, etc.
Estes exemplos são suficientes para demonstrar a importância do formato da letra para a legibilidade da escrita. Muitas vezes, as formas inadequadas das letras são consequência da falta de orientação docente, do mau uso ou do abuso das cópias e dos ditados ou da rapidez descabida da escrita para fazer apontamentos em aula, dentre outras.
Uniformidade
A letra cursiva, em nosso alfabeto, apresenta quatro características no traçado em relação à linha:
• só há uma letra cujo traçado sobe a desce – f;
• há seis letras com haste ascendente – b,d,h,k.,l,t;
• há seis letras com haste descendente – g j,p ,q, y, z
• há treze letras que citamos de pequenas – a, c, e.i.,m, n, o,r,s,u, v,w, x.
Aprender a manter a uniformidade no traçado significa formar hábitos de escrita que obedeçam às quatro características apontadas.
Espaçamento
O espaçamento é importante fator que concorre para a legibilidade. É preciso verificar:
- Se há espaço entre uma letra e outra, na palavra;
- Se há espaço entre uma palavra e outra;
- Se há espaço entre uma frase e outra;
- Se há espaço entre parágrafos.
Quando os espaços entre as letras não são uniformes, há prejuízo na leitura; o mesmo acontece entre as palavras. Especialmente no quadro-de-giz, o professor deve cuidar para que fique um espaço adequado entre as palavras, principalmente nas séries do 1‘ciclo. Isto evita que as crianças que estão mais afastadas do quadro vejam as palavras, uma como continuação da outra, copiando-as como se fossem uma só.
É preciso cuidar, também, o espaço entre frases, tendo em vista as letras com hastes.
Ligamentos
Na letra cursiva, os ligamentos também são fatores importantíssimos para a legibilidade: letras que formam uma palavra devem ser ligadas entre si. A omissão de ligamentos provoca no leitor uma como escrita espelhada, o que merece toda a atenção do professor.
Tendência à leitura de uma palavra por partes, simulando diferentes palavras. Em se tratando de crianças que lêem o que escrevemos no quadro-de-giz ou em folhas xerografadas, a nossa omissão de ligamentos pode concorrer para a ilegibilidade. O aluno, geralmente, escreve como o professor ensina.
Inclinação
A letra cursiva de uma pessoa destra se apresenta ligeiramente inclinada para a direita. Isto favorece a leitura.
A inclinação da letra pode depender da posição que se adota para escrever mas, essencialmente, depende da posição em que se coloca o papel onde vai se escrever. Um aluno sentado de frente para sua mesa deverá colocar a folha de papel ou a de seu caderno levemente inclinada para a esquerda. Desse modo, a letra sairá ligeiramente inclinada para a direita. Quanto maior a inclinação do papel, à esquerda, maior a inclinação de letra à direita.
Crianças que escrevem com a mão esquerda deverão inclinar o papel para a direita.
Outro aspecto a ser observado é a passagem de um sistema de escrita (letra de forma) para outro (letra cursiva), por exemplo. É preciso realizar um trabalho bem planejado, de comum acordo com os alunos, de modo sistemático e cuidadoso.
A letra cursiva exige maior esforço mental e físico da criança porque apresenta complexidade de movimentos.
De preferência, o professor deve procurar realizar um atendimento individualizado, atento às dificuldades que poderão surgir, incentivando todos os alunos, em geral, e cada um, em particular, para que se evitem sérios problemas posteriormente.
O uso da caligrafia, considerada obsoleta e antipedagógica pelos desavisados e indicada pelos mais modernos autores, ocupa papel relevante, hoje em dia. Visa atender às atuais exigências de clareza, legibilidade e rapidez, justificando-se, portanto, sua presença em sala de aula, nas atividades escolares.
Para que o professor possa identificar, com mais segurança, crianças com disgrafia, em sala de aula, apresentamos alguns indicadores:
rigidez no traçado – o aluno pressiona demasiado o lápis contra o papel;
relaxamento gráfico – o aluno pressiona debilmente o lápis contra o papel;
impulsividade e instabilidade no traçado – o aluno demonstra descontrole no gesto gráfico; o traçado é impulsivo, apressado, confuso, com a escrita irregular e instável;
lentidão no traçado – o aluno demonstra um traçado arrastado, lento, tornando evidente um grande esforço de aplicação e controle;
dificuldades relativas ao espaçamento – o aluno deixa espaço irregular (pequeno ou grande demais) entre letras, palavras; não respeita margens; amontoa letras;
dificuldades relativas à uniformidade – o aluno escreve com letras grandes demais (macrografia) ou pequenas demais (micrografia) ou mistura ambas; mostra desproporção entre maiúsculas e minúsculas e entre as hastes;
dificuldades relativas à forma das letras, aos ligamentos e à inclinação – o aluno apresenta deformação no traçado das letras; evidencia falta de ligamentos entre as letras; inclina-as demasiadamente para a esquerda, para a direita ou para ambas as direções.
Com base nestas informações, o professor poderá fazer um diagnóstico das possíveis dificuldades de seus alunos, fazendo o registro de suas observações na Ficha para Coleta de Dados que sugerimos no quadro abaixo.
Uma análise cuidadosa dos dados apresentados pela ficha oferecerá ao professor as melhores condições para a elaboração de um plano de atividades para sanar ou minimizar os problemas detectados.
Vários exercícios podem ser realizados em parceria com outros professores (Educação Física, Arte, por exemplo), para o desenvolvimento das habilidades motoras, do esquema corporal, das percepções. Outros, como os que apresentamos neste texto, deverão ser realizados em sala de aula, com todos os alunos. Certamente eles serão beneficiados.
Inúmeras atividades relacionadas ao erro pedagógico devem ser oportunizadas às crianças, especialmente aquelas voltadas à correção de possíveis dificuldades de espaçamento (entre letras, palavras, frases) e de ligamentos que podem vir a prejudicar sensivelmente a compreensão textual quando se realiza a leitura. Vejamos a seguir alguns exemplos:
Se, após a realização de um programa bem planejado para sanar ou minimizar os problemas, o professor observar que alguns alunos ainda permanecem com dificuldades, deverá encaminhá-los a pessoas especializadas, a quem compete o trabalho de reeducação da linguagem.
Bibliografia e dicas de leitura:
CAGLIARI, L. C. Alfabetização & lingüística. São Paulo: Scipione, 1989.
FERREIRO, E.; PONTECORVO, C.; MOREI-RA, N. Ribeiro; HIDALGO, I. Garcia. Caperucita Roja aprende a escribir: estudios psicolinguísticos comparativos en tres lenguas. Barcelona: Gedisa, 1996.
KATO, Mary A. (org.). A concepção da escrita pela criança. 2. ed. São Paulo: Pontes, 1992.
TEBEROSKY, A.; TOLCHINSKY, Liliana. Más allá de la alfabetización. Buenos Aires: Santillana, 1995.
FONTE DE PESQUISA: http://www.projetospedagogicosdinamicos.com/edespecial3.htm
Excelente! Muito esclarecedor. Gratidão
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