Entrevista à revista HAPPY WOMANJornalista Mafalda Galambas
1.É muito frequente as crianças mentirem?
Nelson S. Lima: Podemos acreditar que sim. Mentem. Tal como mentem os adultos. A mentira pode ser entendida como uma táctica ou como uma estratégia. Como táctica faz parte do "jogo social" e a mentira aparece inserida em imprecisões, omissões, alterações nos conteúdos da comunicação e ocultação. Como estratégia é algo mais elaborado, intencional e visa o médio e o longo prazo. Esta é mais própria dos adultos e nem sempre é isenta de riscos para ambas as partes (quem mente e quem é vítima da mentira).
2.Trata-se de um comportamento mais comum em que idades?
A mentira nas crianças é mais uma táctica usada como um jogo defensivo dos seus interesses, seja por medo, vergonha ou simplesmente aplicação do logro. Aparece por volta dos 4-5 anos de idade. O logro é comum em muitos outros animais e parece pois ser instintivo e ligado à sobrevivência. Nos humanos pode atingir proporções perigosas.
3.Acontece, geralmente, numa altura em que as crianças já são capazes de distinguir a diferença entre Verdade e Mentira?
Sim, quando já têm perfeita consciência de si mesmas e do que as separa dos outros, incluindo os interesses próprios e os alheios. A criança percebe que a mentira pode protegê-la de castigos, de chamadas de atenção incómodas. A mentira é inicialmente uma táctica de ocultação e só depois evolui para níveis mais elaborados e criativos.
4.A mentira é, habitualmente, utilizada com que intuito?
Defensivo. Mas também pode surgir como forma de ludibriar os outros para atingir benefícios. Desenvolve-se nas brincadeiras entre as crianças onde a mentira nasce muitas vezes do "faz de conta" e da fantasia. Veja-se que as vestes carnavalescas não deixam de ser, na sua essência, uma forma de enganar os outros por puro divertimento. É um patamar anterior à mentira: o logro, o ardil.
5.Quais as principais razões? (Chamar a atenção? Receio de alguma consequência de algo que tenha cometido? Medo dos pais? Necessidade de transmitir uma imagem melhor?...)
De tudo um pouco conforme as situações e as circunstâncias mas sempre dependente da personalidade, da educação, do carácter da criança. O medo pode levar uma criança a refugiar-se em qualquer forma de mentira pois sente-se protegida. Mas a criança também pode fantasiar (mentindo) para chamar atenção e obter benefícios afectivos.
6.O facto de a criança recorrer a mentiras pode reflectir um comportamento que lhes é “familiar”? (Podem fazê-lo por imitação?)
Se ela viver num clima onde a mentira é de uso corrente ela aprende por pura imitação. E torna-se mentirosa. As consequências podem ser desastrosas na adolescência e na vida adulta.
7.A criança tem sempre consciência do que está a fazer? Ou, a mentira pode inocentemente ser fruto da sua imaginação?
Tem consciência mas nem sempre percebe o problema sob o ponto de vista da ética e da moral. Inicialmente, ela pode mentir apenas porque está a fantasiar. Afinal, o mundo mente-lhe. Veja uma mentira: o sol não anda à volta da Terra. A verdade está oculta por fenómenos físicos e astronómicos que ludibriam o nosso cérebro. Repare também nesta situação corrente: quando a criança tem medo do escuro ela imagina "papões" que não existem. Então algo está a mentir-lhe. Mas é ela que cria a própria mentira que é ver "monstros" onde eles não existem.
8.Quem são as maiores vítimas das suas mentiras? Os pais? Os amigos e professores?
A primeira vítima é o mentiroso pois enganando os outros está a entrar em "conflicto" consigo mesmo pois ele sabe a verdade e procura alterá-la, fazendo-o viver em contradição. E isso pode ser bastante incómodo. É essa incomodidade que muitas vezes vai fazê-lo revelar a verdade involuntariamente. Os processos cerebrais da informação são postos em choque com a verdade. O conflito torna-se neurológico e mental. Por isso, viver na mentira é desgastante, física e psicologicamente.
9.Também acontece serem os próprios pais a incitar a criança a mentir?
Sem dúvida. Isso acontece quando os pais vivem num ambiente de mentiras, ocultações e contradições. As crianças percebem desde cedo que em tudo há mentiras. Quando ouvem a mãe ou o pai mandarem dizer que "não estão" para, por exemplo, não terem de atender alguém inoportuno. Basta esse tipo de jogos para elas descobrirem que a mentira faz parte das tácticas sociais de sobrevivência e de oportunismo.
10.Este tipo de comportamento por parte das crianças acontece com maior frequência quando têm pais repressivos?
Quando os pais são autoritários e repressivos as crianças sentem-se impelidas a mentir para se defenderem de castigos. É uma das consequências nefastas do excesso de autoridade e da falta de diálogo e de abertura. Acredito que os pais autoritários são tendencialmente os mais mentirosos.
11.Pode ser um ciclo vicioso?
Torna-se num ciclo vicioso. Mente-se para sobreviver; sobrevive-se melhor mentindo sempre que seja necessário. É o raciocínio lógico de um comportamento automático.
12.Os vários tipos de mentira podem ser classificados? (Ou uma mentira é sempre uma mentira não havendo qualquer tipo de justificação para o facto?)
Há, pelo menos, cinco tipos de mentira e vários graus. Uma é a mentira fruto da fantasia infantil. Outra é o logro (o jogo de ludibriar) para obter benefícios imediatos. Outra é a mentira que se torna crime (fraude, etc.) e que obedece, por vezes, a uma pormenorizada planificação (mais própria dos adultos e do crime organizado). Há também a mentira política que faz parte do marketing eleitoral e do jogo da persuasão e, finalmente, a mentira comercial que tantas vezes usa a publicidade como veículo de arremesso.
13.Como devem os pais ou educadores da criança reagir ao “apanharem-na” a mentir?
É uma boa oportunidade não para lições de moral mas para todos os intervenientes pensarem porque a mentira aconteceu.
14.Devem os pais falar com os filhos abertamente sobre os aspectos negativos da mentira?
Sim, desde que tenham autoridade moral para o fazer. Se as crianças "apanham" mentiras aos próprios pais como podem eles reclamar e dar lições sobre os malefícios da mentira?
15.Tem alguma sugestão que os pais possam colocar em prática e que sirva de incentivo aos filhos a habituarem-se a dizer sempre a verdade?
Para começar, os pais devem apostar no exercício da honestidade e da franqueza. Sem medo. As crianças aprendem por imitação. Assim, se os pais forem pessoas honestas e francas não precisam preocupar-se com o problema. Mas, muitas vezes, os filhos aprendem com os outros a mentir descaradamente. Aí, os pais honestos estarão à vontade para escolherem a forma mais adequada para desincentivarem a mentira como recurso.
16.Como devem os pais fazer valer a opinião de que mentir não é solução? Como fazer as crianças perceber o erro?
Os pais podem contar histórias ou relatar casos da vida em que a mentira resultou em problemas. Nos casos reais encontram-se os melhores exemplos para as lições sobre a arte de viver.
17.Este tipo de comportamento já reflecte alguns traços de personalidade da criança que venham a ser determinantes enquanto adulto?
Sem dúvida. Há muitos factores que predispõem as crianças para mentirem com mais ou menos frequência e gravidade. E depois há ainda quer o ambiente familiar quer o meio envolvente (os amigos, os conhecidos, a vizinhança, os filmes, etc.) que podem acelerar e aprofundar o problema.
18.Alguma coisa relevante que queira acrescentar?
Há, hoje em dia, muitos jogos electrónicos em que a mentira, embora disfarçada, faz parte das tácticas. É importante que os pais levem isso em consideração e se informem sobre os conteúdos desses jogos. Alguns podem ser uma verdadeira escola de mentira pois o jogo é, ele próprio, um produto da fantasia e da pura invenção. E podem incentivar o uso da mentira para as melhores jogadas. Há que reflectir sobre isso.
Entrevista publicada no número de Maio 2010.
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